domingo, 23 de maio de 2010

A Canção dos Nibelungos - parte 3

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Veja aqui a Parte 1 desta análise - A Linguística e a Epopeia

Veja aqui a Parte 2 desta análise - A presença do maravilhoso na construção dos personagens


Parte 3: O Herói

- Siegfried, o herói dos Países Baixos

O protagonista tem claras as características do herói: disposto a conquistar a bela Kriemhild, vai ao reino dos burgúndios, na cidade de Worms, ameaçando os regentes de tomar-lhes os domínios. Com o passar da trama, contudo, Siegfried parece desistir da idéia e acaba tornando-se aliado de Gunther, o rei burgúndio (também pelo fato de que a irmã deste agradava ao jovem herói). Com a ajuda de Siegfried, o soberano consegue vencer os saxões e os dinamarqueses, além de conquistar a poderosa Brunhild.

- Balmung, a espada

Da mesma forma que o ferreiro tem sua bigorna, martelo e ferramentas, o herói também necessita de algo que o caracterize como tal; não apenas psicologicamente, mas que demonstre aos outros sua diferença social, como se fosse um “cartão de identificação” ou de visita. Em “A Canção dos Nibelungos”, Balmung, a espada de Siegfried, é um elemento importantíssimo, sendo como uma complementação do herói e, ele, desta.

Siegfried e sua Balmung parecem interagir como companheiros leais durante a trama; vemos que a espada é o instrumento pelo qual virá a glória do cavaleiro sobre seus inimigos. Claro que o manuseio é importante, e um movimento errôneo pode tirar a vantagem de quem a possui. Justamente por isso, a importância desta complementação de um para com o outro: a glória de um dependerá de como utilizar este instrumento de guerra.

A espada acaba se tornando um item precioso e estimado, e isso acaba atraindo cobiçadores que a desejam com afã, fato que acontece na trama: Hagen, após assassinar Siegfried, toma-lhe a espada. Este gesto pode ser analisado como tomar a força, a coragem, ter para si as qualidades daquele que, outrora, a possuía. A auto-estima do novo dono do item de maior valor moral do inimigo aumenta: é o símbolo máximo de sua vitória e superioridade sobre o outro. Cada vez que ele olhar para Balmung, lembrará de seus feitos, e isso lhe trará forças em momentos de dificuldade, pois se fora capaz de vencer uma vez, será capaz de fazê-lo novamente.

Tendo uma denominação específica (como a Excalibur do Rei Arthur), a espada torna-se como um ser vivo. Essa personificação traz, consigo, afetividade por parte de seu dono. É como uma pessoa amada, um amigo que está ali para lutar e nunca recusa auxílio. Ela torna-se diferente de todas as outras, pois seu nome é único, e isso lhe traz personalidade: a do cavaleiro, que se reflete no objeto. Se ele perecer, ali estará, eternamente, parte de si. Em algum momento da história, percebemos que o herói é a espada; são como dois corpos em comunhão, como um casamento.

- Honra e Lealdade

Estes são atributos que distinguem os heróis épicos, seja para o bem, seja para o mal. Nessa trama, temos alguns exemplos que ilustram bem tais sentimentos.

Siegfried, Hagen, Dankwart e Rüdiger são exemplos típicos. São personagens que lutam até o fim para conseguir realizar seu ideal, mesmo que para isso tenham de sacrificar a própria vida. Com tantas qualidades, podemos indagar: por que Hagen teria matado Siegfried pelas costas, de modo covarde?

No caso de Hagen, honra e lealdade entraram em conflito: sua demasiada lealdade a Brunhild (seja ela verdadeira ou apenas simulada, para que conseguisse o apreço da soberana) fez com que colocasse de lado “parte” de sua honra para derrotar o guerreiro invencível. De certa forma, podemos fazer a análise pelo caminho inverso: Siegfried tinha apenas um ponto vulnerável em seu corpo, ao contrário dos outros humanos. O uso dessa força e invencibilidade pode ser tomado, de certa forma, como atos de covardia quando em luta contra outro guerreiro, uma vez que a batalha sempre penderá para o lado do invencível. Tendo todos os pontos de seu corpo vulneráveis a um ataque, Hagen pode não ter visto problemas em atacar Siegfried pelas costas, uma vez que apenas naquele ponto a luta seria “de igual para igual”.

À exceção dessa controvérsia, não vemos, no restante do enredo, outro ato que se iguale ao de Hagen contra Siegfried. Mesmo na terra dos hunos, quando os burgúndios estão praticamente acoados em um salão, os guerreiros inimigos, mesmo que em maior número, perecem perante a força dos cavaleiros do Reno. A supremacia destes, em alguns momentos, nos faz lembrar da de Siegfried sobre os demais.

Siegfried, quando vivo, coloca todos os outros guerreiros no mesmo nível de força. Uma vez que o matam, é dada aos demais a chance de mostrarem seus dotes com uma proximidade e equivalência maiores um em relação ao outro, pois não têm nenhum poder mágico ou extraordinário para lhes colocar em evidência.

Voltando à análise de honra e lealdade, Rüdiger é um exemplo memorável a ser explorado. É o tipo de pessoa adorada por todos, e, quando colocado contra os burgúndios por ordem de Kriemhild, e posteriormente morto, até mesmo estes choraram por sua morte. A imagem da morte e pós-morte de Rüdiger é realmente forte e bonita, pois une amigos e oponentes num sentimento só. Metaforicamente, podemos ver a morte de um nobre e leal homem como a morte da própria esperança, pois, se fora possível mandar um guerreiro justo à morte certa, de forma injusta, então qual o nível de sensatez dos regentes em relação aos outros? Rüdiger morre por sua lealdade a Kriemhild, ele acaba se tornando um instrumento de ódio da rainha; ódio que transforma o sentimento de amigos e os leva à destruição. Ao mesmo tempo, era ele a última esperança de Kriemhild se vingar de Hagen e dos burgúndios, é o golpe final que tenta dar contra seus inimigos. Essa esperança em demasia sobre o guerreiro ajuda-o a trair seus princípios de amizade e colocar a lealdade à rainha acima daquela aos amigos.

No que diz respeito a Kriemhild, toda a peripécia causada com seu convite aos burgúndios para que visitassem as terras dos hunos pode ser considerada um ato de lealdade à memória de seu amado Siegfried. Mais uma vez há a dualidade: sentimentos fortes de lados opostos e que geram conflitos necessários para a trama. Ao final, ela mostra o ápice de sua lealdade ao decapitar Hagen, de forma covarde, mas agindo pela mesma análise que vimos sobre Siegfried, Hagen e a covardia: se não estivesse atado como prisioneito que era, Kriemhild nunca poderia cortar-lhe a cabeça, sozinha, como fizera, uma vez que seu oponente era um experiente guerreiro. A condição deste estar amarrado equivale àquela de Siegfried ser assassinado pelo seu ponto fraco; como se este fosse uma releitura da situação do outro.


- Darini


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