segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

O Vendedor de Amendoim

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Não tinha como não reparar naquele homem que ficava vendendo amendoins perto do terminal de ônibus. Já de longe ele se fazia perceptível, anunciando seu produto em alta voz e com alegria e animação contagiantes.
- Olha o amendoim, pessoal! Torradinho, salgado e fresquinho! Vamo que vamo! – gritava.
Era engraçado como ele não dava a mínima para a meia-dúzia de esnobes que tentavam passar por ele fingindo ter pressa. Se pudessem, passariam por cima do coitado, que não se deixava abater. Ao contrário da leveza de seu temperamento, sua feição era a de um homem sofrido, que passou por várias durezas da vida.
Ele era bem generoso na dosagem, fazendo com que a porção pequena virasse média; a média virasse grande e a grande virasse enorme. Não regulava amostras grátis de seu produto a quem desejasse experimentar sem compromisso.
Ao final do dia, ele colocava o enorme saco de amendoins no carrinho e caminhava até sua humilde casa, onde começava mais uma jornada: construir um quarto a mais para sua filha, que se casaria em breve. Cada tijolo que colocava na estrutura era motivo de orgulho e alívio. “Um a menos!” – pensava.
A esperança de um futuro melhor para sua família era o que lhe ajudava a carregar o fardo do dia a dia. Era o que deixava, de certa forma, aquele enorme saco de amendoins um pouco mais leve, o calor do sol um pouco mais ameno, o ar poluído um pouco mais respirável, as intempéries um pouco mais amistosas e a falta de educação das pessoas um pouco mais tolerável.
Sua maior cliente era uma velhinha, professora aposentada, que sempre, todas as manhãs, com chuva ou sol, passava pelo terminal e fazia questão de comprar uma meia-dúzia de amendoins, mesmo que não os fosse consumir. Naquela idade, não seria bom abusar de um alimento tão forte. Tudo para ajudar o amigo.
Com um andar lerdo e suave, sempre lhe contava uma piada, mesmo que sem graça, inventada por ela. Naquele dia, veio com essa:
- Uma vez eu fui para Brasília e ouvi a seguinte conversa entre dois deputados: “domingo, estava na minha fazenda, admirando meu belo e caro automóvel, obtido de forma totalmente legal, quando meu cachorro entrou no carro, deu a partida e saiu guiando pela fazenda, passando quatro faróis vermelhos, atropelando quinze galinhas e estacionando em local proibido. Após isso, fiz no animal o teste do bafômetro e constatei que ele estava bêbado. E eu também!
O vendedor de amendoins sempre ria, mesmo que não entendesse ou não achasse graça na piada. Afinal de contas, não custava nada retribuir um sorriso a quem tentava lhe dar um pouco de alegria. “Essa professora também deve ter passado por poucas e boas nos anos de escola; cada um é que sabe de sua cruz!” – pensava consigo.
De vez em quando, ela lhe confessava o quão saudosa estava do falecido marido, também professor, e dizia que já estava acostumada, mais do que conformada, com a solidão. Por isso mesmo buscava sair para a rua, ver pessoas, puxar conversa, contar piadas... “tudo pra não ficar gagá!” – ela dizia.
- É verdade. Podem tirar tudo da gente, menos a sabedoria e o bom-humor! – ele concordava, filosofando.
- E, para isso, a cabeça tem que estar cem por cento! – ela completava.
A velhinha professora teria comentado por alto que seu aniversário seria nos próximos dias. O vendedor, então, entusiasmado, resolveu lhe fazer um pequeno agrado, comprando-lhes um singelo pedaço de bolo e uma latinha de refrigerante. Na semana seguinte, quando ela apareceu, ele a surpreende:
- Não sei bem qual o dia certinho, mas... parabéns! Muitas felicidades e que a senhora continue sendo essa pessoa maravilhosa.
Ela fica atônita de emoção e quase tem um treco. Seus olhos lacrimejam, então ela agradece e dá um forte e demorado abraço no amigo. Sentam-se num banco que havia ali perto para comer.
- Não precisava se preocupar nem gastar dinheiro comigo! – ela diz.
- Claro que sim! Eu considero a senhora uma grande amiga minha, mesmo que a gente não vá na casa um do outro. Além do mais, desculpa dizer, mas me lembra muito a minha mãezinha, que já partiu faz um tempo. – ele responde, comovido.
Sabendo que aquela seria a única homenagem que receberia, a professora come com gosto cada pedaço do bolo, que era simples, mas extremamente gostoso.
- Você mesmo que fez esse bolo? Está muito bom!
- Não, sempre fui muito ruim na cozinha. Foi minha mulher que fez! Ela é excelente nessas coisas.
- Pois mande meu agradecimento a ela. E mande também um beijão; estou muito feliz!
- É humilde, mas de coração, minha amiga.
- E isso é o mais importante. É a coisa mais valiosa que ganhei nesses últimos anos. – ela finaliza.
Realmente, ela não estava mentindo. De certa forma, o vendedor de amendoins lhe servia como a família que a abandonara – estavam vivendo em outra cidade, com suas novas famílias e rotinas. Até tentaram levá-la com eles há muitos anos, mas ela, teimosa e receosa de uma nova vida em um novo lugar, recusou. Desde então, o contato com eles estava cada vez mais diminuto e nunca mais um novo convite de mudança foi feito. “Eles não têm tempo; a vida é muito agitada” – ela repetia sempre, conformando-se e enganando-se.
Embora se considerassem amigos, evitavam compartilhar muitos dos problemas um com o outro. Essa reserva se explicava pelo fato de cada um achar seu homólogo preocupado o suficiente com a própria vida, o que acabou por criar uma barreira de assuntos nos quais não se tocava. Suas conversas eram para espairecer e descontrair.
A rotina era sempre a mesma: ela descia a rua até o terminal, pedia “o de sempre”, conversava com o amigo, despedia-se e dirigia-se à praça, onde ficava por algumas horas até a hora do almoço. Às vezes, comia na rua mesmo ou em algum lugar que fosse compatível com a não tão farta aposentadoria.
Um dia, porém, ela não apareceu. Nem no outro. Nem no terceiro. E, por semanas a fio, ela estava sem dar as caras. O vendedor de amendoins ficou preocupado, pois era uma pessoa idosa, morando sozinha e que não devia ter a saúde muito boa. “Será que foi embora pra casa dos filhos?”; “Será que precisou viajar às pressas por algum motivo?”; “Será que aconteceu o pior?” – ele se perguntava.
Ele não tinha nem como contatá-la, pois não sabia seu endereço, telefone, nem se mais alguém naquele terminal a conhecia. Embora conversasse bastante com ele, não parecia ser alguém lá muito sociável.
Perguntou pro jornaleiro do terminal, pros motoristas, cobradores, nos bares do entorno, pros policiais... a maioria se lembrava dela, mas ninguém tinha o contato ou alguma informação sobre a velhinha. Restava-lhe esperar e não perder as esperanças de que estivesse bem.
Em todos esses dias de desaparecimento da amiga, era perceptível a mudança na entonação, na voz, nos trejeitos dele. Era como se, após anos de convivência, faltasse-lhe algo para que o dia fosse completo. O mais dolorido de tudo era a incerteza do que poderia ter acontecido. Isso era o pior.
Naquela noite, o vendedor de amendoins teve um sonho. Ele passeava por um gramado lindo, verdejante, quase infinito de tão grande, quando lhe aparece a amiga. Era ela, a velhinha, a professora aposentada, que estava a metros de distância dele. Sorria e tinha um ar sereno, conforme a brisa fazia mexer os cachos de cabelos brancos. Ele se aproxima dela, gritando:
- Que saudades, minha amiga! Que saudades! Por que não foi mais me visitar? Fiquei preocupado com você!
- Não, não se preocupe comigo, meu querido. Eu estou bem. Na verdade, foi tudo tão... rápido! Outro dia, eu estava em casa lendo um livro, quando ouvi uma voz, um chamado familiar. Desviei o olhar da leitura, e quem eu vi bem na minha frente? Meu marido! Meu saudoso, amado e querido marido, que há tantos anos partia! E ele estava lindo! Maravilhoso! Ele então pegou na minha mão, eu me levantei, e demos um beijo. Então me disse: “vim te buscar. Quer ficar comigo?”
- E... e... o que você respondeu? – pergunta, afoito, o vendedor de amendoins.
- Claro que eu aceitei. Ele é o amor da minha vida, querido. Aí nos abraçamos, e ele me trouxe para um lugar lindo. É onde quero ficar com ele. – ela respondeu.
- Vou sentir saudades de você! Foi sem avisar, sem se despedir! – diz o vendedor, chorando.
- Sim, foi de repente! Até eu me assustei quando soube! E não quero que nos despeçamos; quero que fiquemos vivos na memória um do outro. Promete que não vai se esquecer de mim?
- Claro que não, minha amiga! E nem você de mim!
- Nunca! Nunca! Nunca! – ela respondeu, desaparecendo sutilmente dali.
Ele então acordou, entristecido, mas conformado. Suspirou, puxou o cobertor para si, virou para o lado e dormiu profundamente, pronto a acordar definitivamente num mundo em que a melhor amiga não mais fosse visitá-lo.



- Darini