Ao contrário do
que muita gente pensa, eu vivo. Vivo no inconsciente coletivo, mas vivo. Afinal
de contas, quem disse que a existência não pode ser relativa? Quando alguém diz
“para mim, Fulano morreu”, ele realmente deixa de existir?
Faz uns anos
que me tornei um alcoólatra. Nem sei mais como anda meu fígado, pois deixei de
fazer exames depois da décima quinta internação. O bêbado sempre arruma uma
desculpa para seu vício, pois então aqui vai a minha: talvez as
responsabilidades jogadas sobre meus ombros pesavam mais do que eu pudesse
carregar. Orgulhoso e egoísta, nunca pedi ajuda a ninguém, ao contrário do que
muitos dizem. Jogar-se de corpo e alma a um ideal (ou a um empregador) pode ser
perigoso. Letal. Fatal.
Fui deixado por
minha esposa; não tivemos filhos. Talvez tenha sido por isso que me fazia tão
bem me sentir pai de alguém, mesmo que por alguns momentos da vida. De alguma
forma, quanto mais forte o sentimento de paternidade em meu coração, maior era
minha vontade de viver. Era minha sustância. E, como pai, a única coisa que
pedia em troca era um pouquinho de harmonia e respeito entre meus “filhos”. Não
deu muito certo.
Lá fora, o frio
é intenso, provavelmente reflexo de meu estado de espírito. Não consigo ver vida
ou alegria; pelo contrário, apenas o eterno branco da neve derramada como as
lágrimas do pranto da solitária princesa que perdeu seu amado cavaleiro em
combate. Pura branquidão cegante de Saramago.
Começo a ter
alucinações... ao longe, vejo um terremoto arrasando uma cidade que, até então,
nunca havia passado por esse mal. Cada edifício se rende às tremidas do chão: o
branco cai depois daquela linda torre, que cai antes do prédio revestido de
espelhos, que brilhava como um sol enraizado no solo. Pessoas correm e se
desesperam. A maioria padece.
Sinto-me
impotente e entristecido diante tamanha destruição. Entretanto, não me sinto
culpado ou responsável por isso. Sei que não sou um assassino, tampouco um
sádico que vislumbra o sofrimento alheio. Sou apenas um velho solitário que nada
pode contra a natureza humana. Por outro lado, estou certo de que minha missão
foi plenamente cumprida e que não sou um frustrado.
Vou embora, mas
não de suas mentes. Quero estar presente em seus pesadelos, em suas lamentações.
Em suas mais nostálgicas lembranças. Quero ser parte da saudade mais dolorida de
suas mentes e corações. Quero ser intrínseco à angústia que vocês sentirem.
Serei a lágrima mais pesarosa que vocês e seus filhos hão de
chorar.
Papai Noel
- Darini