terça-feira, 4 de agosto de 2015

17 anos

***



O breu do quarto tornava ainda mais aterrorizante o barulho dos trovões anunciadores da chuva que, em breve, cairia do lado de fora. Nas paredes, fotos de um passado saudoso, tempos de sonho e esperança ainda vivos em sua memória. A saudade judiava e, ao mesmo tempo, rejuvenescia.

              A televisão estava desligada há tempos. Em cima da mesa, uma xícara de café que já se tornara frio e, ao lado, o porta-retratos mostrava o falecido amor, a eterna companheira do então jovem de 17 anos.

              A luz estava apagada. O não-ver as coisas lhe trazia um pouco de conforto, de aconchego. Poderia imaginar tudo como bem lhe conviesse, de um modo perfeito, que, conforme pensava, era como deveria ser. Imaginava-a do seu lado, pegando na sua mão e olhando no fundo dos seus olhos. Não falava, pois não precisava, não era necessário. Os olhares e o tato diziam tudo. Sentiam tudo. Pensativo, voltou à sua juventude... e sonhou...

              Sonhou que estava em uma cidadezinha no interior da Europa. No alto da mais bela colina, ele podia desfrutar da maravilhosa visão que lhe dava o vilarejo, com pessoas passeando e trabalhando tranquilamente, as crianças e seus animais correndo e brincando de um lado para o outro. A floresta, que parecia levar ao infinito quem nela entrasse e, do outro lado, enormes montanhas com alguns pouquíssimos chalés nas trilhas para os cumes. A neve em seu topo era um espetáculo à parte, fazendo com que parecessem uma pintura à óleo. Aquela beleza fascinava o jovem: tudo aquilo mais parecia o tempo medieval, como havia lido nos livros de história. As pessoas tinham roupas e um modo de vida bem simples que, de longe, parecia bem mais gostoso do que aquela correria da agitada e moderna cidade em que passou os últimos anos. Podia-se ouvir o som verdadeiro da natureza, dos animais e até o das pessoas conversando num tom suave e ameno.

              Piscou os olhos, e voltou para sua escura e vazia sala. Do lado de fora, ouvia o ladrar dos cães reclamando do mau tempo. Da fome, talvez. Fechou os olhos novamente, e viu uma grande festa num enorme salão. Lá, estavam todos os seus amigos do tempo da louca juventude. No meio do salão, havia um grande lustre, como aqueles que encontramos nas casas de gente abastada. Várias mesas tinham, à disposição dos convidados, os mais diferentes pratos e bebidas. Comidas leves, pesadas, frias, quentes... tudo a um passo de distância de quem as quisesse saborear. Nas paredes, belos quadros de grandes artistas transformavam aquele local num sarau das artes plásticas. Adorava aquilo. As molduras das janelas eram detalhadas, obras de arte para anunciar outra obra: o amplo jardim que descansava sob as estrelas no lado de fora.

              A música começou. Era uma valsa. Desesperado, corre por todo o salão em busca de seu par, sua grande amada. Estava sentada, parecendo como se à sua espera. Vestia um longo vestido rosa com detalhes em branco. O cabelo estava impecável, montado com uma bela tiara dourada. Estava imponente.

              Ele se aproximou e chamou-a para dançar. Ela atendeu seu chamado prontamente, e bailaram por horas a fio. Olhos nos olhos, não conseguiam enxergar mais ninguém em seu caminho... apenas conseguiam escutar aquela música, que mais parecia vozes angelicais entoando seu cântico em homenagem ao amor daquelas duas criaturas. Estavam no céu, no paraíso. Aquilo era a verdadeira felicidade.

              Piscou os olhos, e voltou para sua escura e vazia sala. Do lado de fora, a chuva parecia ter diminuído, mas as negras nuvens não haviam ainda se dispersado. Estica o braço, toma um gole do já frio café. Não se importa com o sabor, nada mais o incomodava.

              Como eram bons os tempos daqueles 17 anos: a vida, as coisas, a cidade, sua família, as rotinas de adolescente... a descoberta do amor e de tudo a ele relacionado. Queria voltar àqueles tempos, daria tudo para que isso fosse possível, mas sabia que não era. O tempo passara, o velho senhor arcou com suas responsabilidades, fossem elas para o bem, fossem elas para o mal. Não se dá valor às coisas, quando as vivemos. Sempre esperamos o futuro e damos atenção ao passado para que, em vã esperança, tentemos modificá-lo ou explicá-lo. Para quê? Para nada.

              Fechou os olhos, e viu-se num extenso campo. Lá, andava tranquilamente de mãos dadas com sua namorada, seu amor. A grama era verde, as árvores estavam cheias de frutas doces e saborosas. Subiu num pé de goiaba, e pegou uma para que repartissem. Ao longe, o Sol despontava atrás das montanhas. Como era belo aquele lugar; provavelmente, era o campo mais verde, mais lindo, mais apaixonante que vira em toda sua vida. Com sua amada, sentia-se parte dele.

              Puxou-a pelos braços, fazendo-a correr sem rumo. Às vezes, pegava-a no colo e girava-a, fazendo-os ir ao chão, seguindo altas e confortantes gargalhadas, que só eram interrompidas para que pudessem ouvir o som dos pássaros que os honravam com suas primeiras canções do dia.

              Eles se olham apaixonadamente e beijam-se como se no primeiro encontro estivessem. Sentiam-se totalmente completados um pelo outro; não havia, na face da Terra, outras duas pessoas cujo amor fosse tão claro, tão real, tão mítico como o deles. O tamanho daquele amor era proporcional à intensidade da demonstração de carinhos e afetos que o casal fazia questão de oferecer um para o outro. Simplesmente, amavam-se.

              Piscou os olhos, e... estava com sua amada, num extenso e verdejante campo. O mais verde e vivo que já havia visto em sua vida.

- Darini

sábado, 1 de agosto de 2015

Tio Francisco

***


No final da rua, morava um velho a quem todos chamavam de tio Francisco. Aparentemente, morava sozinho, já que nunca ninguém via outras pessoas entrando ou saindo daquela casa. Apesar da solidão e da idade, ele era um senhor muito bem-humorado e de bem com a vida, que gostava de todos. O que chamava a atenção, principalmente das crianças, era o modo como ele brincava com as palavras. Às vezes, dizia:

- Vocês combinaram de brincar na rua agora? Então podem sembinar, porque está ficando tarde; vou gritar a mãe de vocês daqui a pouco!

Quem já o conhecia sabia todas as nuances do “francisquês”; os novos moradores, porém, acabavam meio perdidos com esse estranho vocabulário, mas o tempo os fazia acostumar.

- Eu era professor e ensinava um monte de palavras novas a crianças como vocês! Hoje em dia, esses professores novos têm preguiça de ensinar! – dizia, sempre com um pouco de arrogância e orgulho na fala.

Alguns vizinhos emburrados, por outro lado, apenas achavam que ele era um velho estudado que gostava de aparecer.

- Está cansado? Então vá descansar! Correu muito? Então fique descorrido! Não dizem por aí que, se conselho fosse bom, vendia-se? Por isso que eu só dou sencelho!

- Brigou com o namorado? Então agora ele é seu nenraivado, até voltar a ser namorado novamente. Vai voltar, né? – perguntava, sem muita discrição, às moçoilas desamparadas.

E não parava por aí. Ele tinha resposta pra tudo. Se lhe perguntavam:

- Qual a sua Oração Subordinada favorita?

Ele respondia:

- Com certeza é a Objetiva Direta. É a melhor de todas, sem sombra de dúvidas!

Ou então:

- Qual o seu número favorito?

Ele mandava:

- É o 659878408489498,36 e meio. Sempre jogo com ele no bicho e nunca falha!

Às vezes, beirava a grosseria. Uma vez, perguntaram:

- Pode me ensinar a fazer Análise Sintática? Chegou as provas e não sei nada!

No que gentilmente respondeu:

- “Chegou” as provas? É, vai ser difícil mesmo...

Ou então:

- Ei, tio Chiquim, qual seu passatempo preferido?

- Pegar metrô às seis da tarde. Toda aquela gente fina num lugar só me leva ao Nirvana! – respondia.

Depois do almoço, Francisco ia para o pequeno quarto-biblioteca que tinha e casa, onde se esbaldava em leituras e mais leituras, hábito que cultivava desde a época de adolescência. “Ainda bem que aposentei, assim tenho mais tempo pra vocês, meus amigos arcadistas!” – falava consigo mesmo (ou com os arcadistas). Depois, tomava uma xícara de café e esperava o cair da preguiçosa noite.

Um dia, porém, tio Francisco morreu. Sozinho, em casa. Nem foi muito difícil para que sentissem a falta dele, já que era a sensação daquela vizinhança. Chegando a céu, deparou-se, logo de cara, com São Pedro. Sem pestanejar, disse-lhe:

- Fala, Pedrão! Cheguei cedo, porque o trânsito estava sengestionado!

- Darini