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Não tinha como não reparar naquele
homem que ficava vendendo amendoins perto do terminal de ônibus. Já
de longe ele se fazia perceptível, anunciando seu produto em alta
voz e com alegria e animação contagiantes.
- Olha o amendoim, pessoal!
Torradinho, salgado e fresquinho! Vamo que vamo! – gritava.
Era engraçado como ele não dava a
mínima para a meia-dúzia de esnobes que tentavam passar por ele
fingindo ter pressa. Se pudessem, passariam por cima do coitado, que
não se deixava abater. Ao contrário da leveza de seu temperamento,
sua feição era a de um homem sofrido, que passou por várias
durezas da vida.
Ele era bem generoso na dosagem,
fazendo com que a porção pequena virasse média; a média virasse
grande e a grande virasse enorme. Não regulava amostras grátis de
seu produto a quem desejasse experimentar sem compromisso.
Ao final do dia, ele colocava o
enorme saco de amendoins no carrinho e caminhava até sua humilde
casa, onde começava mais uma jornada: construir um quarto a mais
para sua filha, que se casaria em breve. Cada tijolo que colocava na
estrutura era motivo de orgulho e alívio. “Um a menos!” –
pensava.
A esperança de um futuro melhor para
sua família era o que lhe ajudava a carregar o fardo do dia a dia.
Era o que deixava, de certa forma, aquele enorme saco de amendoins um
pouco mais leve, o calor do sol um pouco mais ameno, o ar poluído um
pouco mais respirável, as intempéries um pouco mais amistosas e a
falta de educação das pessoas um pouco mais tolerável.
Sua maior cliente era uma velhinha,
professora aposentada, que sempre, todas as manhãs, com chuva ou
sol, passava pelo terminal e fazia questão de comprar uma meia-dúzia
de amendoins, mesmo que não os fosse consumir. Naquela idade, não
seria bom abusar de um alimento tão forte. Tudo para ajudar o amigo.
Com um andar lerdo e suave, sempre lhe
contava uma piada, mesmo que sem graça, inventada por ela. Naquele
dia, veio com essa:
- Uma vez eu fui para Brasília e
ouvi a seguinte conversa entre dois deputados: “domingo,
estava na minha fazenda, admirando meu belo e caro automóvel, obtido
de forma totalmente legal, quando meu cachorro entrou no carro, deu a
partida e saiu guiando pela fazenda, passando quatro faróis
vermelhos, atropelando quinze galinhas e estacionando em local
proibido. Após isso, fiz no animal o teste do bafômetro e constatei
que ele estava bêbado. E eu também!”
O vendedor de
amendoins sempre ria, mesmo que não entendesse ou não achasse graça
na piada. Afinal de contas, não custava nada retribuir um sorriso a
quem tentava lhe dar um pouco de alegria. “Essa professora também
deve ter passado por poucas e boas nos anos de escola; cada um é que
sabe de sua cruz!” – pensava consigo.
De vez em quando, ela lhe confessava o
quão saudosa estava do falecido marido, também professor, e dizia
que já estava acostumada, mais do que conformada, com a solidão.
Por isso mesmo buscava sair para a rua, ver pessoas, puxar conversa,
contar piadas... “tudo pra não ficar gagá!” – ela dizia.
- É verdade. Podem tirar tudo da
gente, menos a sabedoria e o bom-humor! – ele concordava,
filosofando.
- E, para isso, a cabeça tem que
estar cem por cento! – ela completava.
A velhinha professora teria comentado
por alto que seu aniversário seria nos próximos dias. O vendedor,
então, entusiasmado, resolveu lhe fazer um pequeno agrado,
comprando-lhes um singelo pedaço de bolo e uma latinha de
refrigerante. Na semana seguinte, quando ela apareceu, ele a
surpreende:
- Não sei bem qual o dia certinho,
mas... parabéns! Muitas felicidades e que a senhora continue sendo
essa pessoa maravilhosa.
Ela fica atônita de emoção e quase
tem um treco. Seus olhos lacrimejam, então ela agradece e dá um
forte e demorado abraço no amigo. Sentam-se num banco que havia ali
perto para comer.
- Não precisava se preocupar nem
gastar dinheiro comigo! – ela diz.
- Claro que sim! Eu considero a
senhora uma grande amiga minha, mesmo que a gente não vá na casa um
do outro. Além do mais, desculpa dizer, mas me lembra muito a minha
mãezinha, que já partiu faz um tempo. – ele responde, comovido.
Sabendo que aquela seria a única
homenagem que receberia, a professora come com gosto cada pedaço do
bolo, que era simples, mas extremamente gostoso.
- Você mesmo que fez esse bolo? Está
muito bom!
- Não, sempre fui muito ruim na
cozinha. Foi minha mulher que fez! Ela é excelente nessas coisas.
- Pois mande meu agradecimento a ela.
E mande também um beijão; estou muito feliz!
- É humilde, mas de coração, minha
amiga.
- E isso é o mais importante. É a
coisa mais valiosa que ganhei nesses últimos anos. – ela finaliza.
Realmente, ela não estava mentindo.
De certa forma, o vendedor de amendoins lhe servia como a família
que a abandonara – estavam vivendo em outra cidade, com suas novas
famílias e rotinas. Até tentaram levá-la com eles há muitos anos,
mas ela, teimosa e receosa de uma nova vida em um novo lugar,
recusou. Desde então, o contato com eles estava cada vez mais
diminuto e nunca mais um novo convite de mudança foi feito. “Eles
não têm tempo; a vida é muito agitada” – ela repetia sempre,
conformando-se e enganando-se.
Embora se considerassem amigos,
evitavam compartilhar muitos dos problemas um com o outro. Essa
reserva se explicava pelo fato de cada um achar seu homólogo
preocupado o suficiente com a própria vida, o que acabou por criar
uma barreira de assuntos nos quais não se tocava. Suas conversas
eram para espairecer e descontrair.
A rotina era sempre a mesma: ela
descia a rua até o terminal, pedia “o de sempre”, conversava com
o amigo, despedia-se e dirigia-se à praça, onde ficava por algumas
horas até a hora do almoço. Às vezes, comia na rua mesmo ou em
algum lugar que fosse compatível com a não tão farta
aposentadoria.
Um dia, porém, ela não apareceu. Nem
no outro. Nem no terceiro. E, por semanas a fio, ela estava sem dar
as caras. O vendedor de amendoins ficou preocupado, pois era uma
pessoa idosa, morando sozinha e que não devia ter a saúde muito
boa. “Será que foi embora pra casa dos filhos?”; “Será que
precisou viajar às pressas por algum motivo?”; “Será que
aconteceu o pior?” – ele se perguntava.
Ele não tinha nem como contatá-la,
pois não sabia seu endereço, telefone, nem se mais alguém naquele
terminal a conhecia. Embora conversasse bastante com ele, não
parecia ser alguém lá muito sociável.
Perguntou pro jornaleiro do terminal,
pros motoristas, cobradores, nos bares do entorno, pros policiais...
a maioria se lembrava dela, mas ninguém tinha o contato ou alguma
informação sobre a velhinha. Restava-lhe esperar e não perder as
esperanças de que estivesse bem.
Em todos esses dias de desaparecimento
da amiga, era perceptível a mudança na entonação, na voz, nos
trejeitos dele. Era como se, após anos de convivência, faltasse-lhe
algo para que o dia fosse completo. O mais dolorido de tudo era a
incerteza do que poderia ter acontecido. Isso era o pior.
Naquela noite, o vendedor de amendoins
teve um sonho. Ele passeava por um gramado lindo, verdejante, quase
infinito de tão grande, quando lhe aparece a amiga. Era ela, a
velhinha, a professora aposentada, que estava a metros de distância
dele. Sorria e tinha um ar sereno, conforme a brisa fazia mexer os
cachos de cabelos brancos. Ele se aproxima dela, gritando:
- Que saudades, minha amiga! Que
saudades! Por que não foi mais me visitar? Fiquei preocupado com
você!
- Não, não se preocupe comigo, meu
querido. Eu estou bem. Na verdade, foi tudo tão... rápido! Outro
dia, eu estava em casa lendo um livro, quando ouvi uma voz, um
chamado familiar. Desviei o olhar da leitura, e quem eu vi bem na
minha frente? Meu marido! Meu saudoso, amado e querido marido, que há
tantos anos partia! E ele estava lindo! Maravilhoso! Ele então pegou
na minha mão, eu me levantei, e demos um beijo. Então me disse:
“vim te buscar. Quer ficar comigo?”
- E... e... o que você respondeu? –
pergunta, afoito, o vendedor de amendoins.
- Claro que eu aceitei. Ele é o amor
da minha vida, querido. Aí nos abraçamos, e ele me trouxe para um
lugar lindo. É onde quero ficar com ele. – ela respondeu.
- Vou sentir saudades de você! Foi
sem avisar, sem se despedir! – diz o vendedor, chorando.
- Sim, foi de repente! Até eu me
assustei quando soube! E não quero que nos despeçamos; quero que
fiquemos vivos na memória um do outro. Promete que não vai se
esquecer de mim?
- Claro que não, minha amiga! E nem
você de mim!
- Nunca! Nunca! Nunca! – ela
respondeu, desaparecendo sutilmente dali.
Ele então acordou, entristecido, mas
conformado. Suspirou, puxou o cobertor para si, virou para o lado e
dormiu profundamente, pronto a acordar definitivamente num mundo em
que a melhor amiga não mais fosse visitá-lo.
- Darini